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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

RESENHA - Muito Longe de Casa - Memórias de um menino-soldado - Ishmael Beah

          Muito longe de casa é uma história sobre guerras. Porém, uma guerra das mais estarrecedoras do século XX, pois uma grande parte dos soldados são crianças arrancadas à força de suas famílias e treinadas para se tornar potentes “armas”.

         Ishmael Beah foi uma das aproximadamente trezentas mil crianças-soldado que atualmente participam de conflitos pelo mundo. Ishmael nasceu em Serra Leoa em 1980, mudou-se para os Estados Unidos em 1998 e vive, atualmente, em Nova York. Formado pelo Oberlin College, bacharel em Ciências Políticas e membro do Comitê de Direitos da Criança da ONG Human Rights Watch. Participa na ONU, no Conselho de Relações Internacionais dos Estados Unidos e diversos congressos em defesa de crianças afetadas pelas guerras.

          Serra Leoa havia sido colônia britânica desde 1808 e sua independência deu-se em 1961. Em 1968, Siaka Stevens, do partido All People’s Congress – APC ( Congresso de Todo o Povo), assumiu o poder e declarou que o país seria um Estado unipartidário, sendo o APC o único partido legal. Foi o começo da “política podre”, como costumava dizer o pai de Ishmael.

         Ishmael tinha 12 anos, quando, em janeiro de 1993 a guerra o alcançou. Ele havia ido à cidade de Mattru Jong, com seu irmão mais velho e amigos, para participar de um show de talentos. Houve um ataque de rebeldes e ele perde o contato com a família. Não puderam mais sair da cidade onde estavam, pois poderiam ser encontrados pelas forças rebeldes. Eles eram um grupo de seis meninos. Ali permaneceram por muitos dias até que chegaram os rebeldes atirando em tudo e em todos e forçando as pessoas a abandonarem suas casas e procurarem refúgio na floresta. Ishmael e seu irmão Junior também fugiram e foram perseguidos; presenciando mortes terríveis. Peregrinaram por aldeias abandonadas procurando comida. Passaram fome. Acabaram sendo pegos pelos rebeldes. Conseguiram fugir e sua peregrinação continuou.

          Chegaram a uma aldeia em Kamator onde ficaram por três meses trabalhando na lavoura até a chegada dos rebeldes que os obrigou novamente a fugir. Foi durante este ataque, que se deu de forma inesperada, à noite, que Ishmael se perde de seus amigos e seu irmão. Foi a última vez que viu seu irmão Junior.

          Durante um mês, Ishmael andou, sozinho, pela floresta, tentando achar a saída. Alimentava-se de frutos desconhecidos, que, vendo os passarinhos comer, deduzia não serem venenosos. Tomava água de riachos que encontrava pelo caminho. Seu medo e solidão eram indescritíveis. Tinha por companhia, apenas as lembranças de sua família. Ele caminhava devagar, cambaleando de dor e fome, quando encontra alguns garotos da sua idade. Junta-se ao grupo, que seguia para uma aldeia que diziam estar protegida pelas forças armadas de Serra Leoa. Agora eram sete. Formavam um novo bando. O medo os havia transformado em monstros, segundo as próprias palavras de Beah. Em sua caminhada rumo à aldeia de Yele foram perseguidos, apanharam e quase morreram. Ninguém confiava em ninguém. Durante a caminhada perderam um membro do grupo que morreu repentinamente durante a noite. Eram agora seis. Sua andança continuou; mas a cada aldeia que chegavam, os rebeldes, a maioria de sua idade ou pouco mais, os precediam e eles só encontravam morte e desespero; cenas dantescas e indescritíveis. A cada experiência iam tornando-se mais embrutecidos.

          Por fim, chegaram à aldeia de Yele, onde, por um tempo, ficaram seguros junto aos soldados da força de defesa. Foi por pouco tempo, pois os rebeldes cercaram a aldeia e todos os homens e meninos foram armados com AK-47 para defendê-la, inclusive Ishmael e seus amigos. Ganharam bermudas do exército, e camisetas, também pares de tênis novos. Estavam prontos para o treinamento.

          Chegou o dia de partirem para a luta. Do lado rebelde havia garotos da mesma idade dos garotos da força de defesa. Nesta batalha Beah perdeu dois de seus amigos, o que lhe deu força para atirar com ódio contra os rebeldes. O grupo de resistência começou a invadir acampamentos de rebeldes bem como aldeias de civis para capturar recrutas e pegar o conseguissem achar para sua sobrevivência. A maioria era viciada em analgésicos e cocaína misturada com pólvora. Ishmael também tornou-se usuário. A força de resistência usava uma bandana verde que os distinguia dos rebeldes. Vivam na frente da batalha, ou assistindo a filmes ou usando drogas. Não havia tempo para pensar. Era como se nada mais existisse fora dessa realidade.

          Estavam lutando há mais de dois anos. O pelotão era a sua família e sua lei era matar ou morrer. Beah não tinha pena de ninguém. Sua infância havia passado e ele nem percebeu. Mas tudo começou a mudar no final de janeiro de 1996. Ele estava com 15 anos. Saiu junto com mais 20 homens para buscar munição na pequena cidade de Bauya. Quando lá estavam, viram chegar um caminhão com homens de camisetas do Unicef. Esses homens haviam ido até lá para resgatar os meninos e levá-los para um Centro de Reabilitação onde receberiam estudos e o direito a uma nova vida. Ishmael estava entre os meninos selecionados. Ele resistiu, não queria ir. Não conhecia outra forma de vida e não queria separar-se de sua arma, que era sua protetora.

          Chegaram ao acampamento, onde encontraram muitos meninos – “rebeldes” e do “exército” – estava feita a confusão. Começaram a brigar, pois, consideravam-se inimigos. Alguns estavam com armas escondidas e conseguiram matar e ferir muitos. Luta controlada, foram levados ao centro de reabilitação, chamado Lar Benin. Na primeira semana de reabilitação a falta das drogas estava causando terríveis crises de abstinência e eles chegaram a invadir o pequeno hospital à procura de analgésicos variados, que misturavam para aumentar seu efeito. A cada dia ficavam mais agressivos. Destruíam tudo no centro de reabilitação. Após uma crise de abstinência, Beah feriu-se gravemente e teve que ser internado por vários dias. Tinha crises de enxaqueca e não conseguia dormir, viciado que estava em analgésicos; levou vários meses até reaprender a dormir sem a ajuda dos remédios.

          Os internos receberam material escolar que queimavam; o material era reposto. Depois, descobriram que podiam vendê-los na feira local, até que, por interferência da ONG ninguém mais os comprou. A solução, então, era começar a frequentar a escola. Depois de brigas e confusões, surtos noturnos e pesadelos, foram acalmando-se, acostumando-se à nova situação.

          Ishmael fez amizade com uma enfermeira do hospital. Para ganhar sua confiança ela presenteou-o com um walkman e uma fita de rap. Foi a única maneira que ela encontrou para que ele se deixasse examinar e começasse a contar o que lhe havia acontecido. Assim começou a reabilitação de Beah.

          Ishamel acaba se destacando no centro por sua sensibilidade e talento para representação. Numa apresentação preparada para visitantes da Comissão Europeia, das Nações Unidas, do Unicef e de várias ONGs, Ishmael leu um monólogo de Júlio Cesar, atuou em um pequeno esquete de hip-hop que ele havia escrito, sobre a redenção de um ex-menino-soldado. Essas atuações causaram boa impressão nos visitantes. Assim, ele torna-se porta-voz do centro e logo começa a participar de reuniões onde falava sobre a participação de crianças nas guerras e de como elas poderiam ser reabilitadas.

          Aproximadamente seis meses depois de sua chegada ao Centro de Reabilitação, conseguiram localizar um tio, irmão de seu pai que morava em Freetown. O tio passou a visitá-lo todos os finais de semana, até que ele estivesse pronto para sair do centro e ser reintegrado novamente a uma família e à sociedade. Após algumas semanas ele foi entregue ao tio para morar com sua família: esposa e quatro filhos.

          Tempos depois, um dos coordenadores do Centro de Reabilitação o procurou para informar-lhe que ele havia sido indicado para participar de uma seleção de duas crianças que iriam à sede das Nações Unidas em Nova York nos Estados Unidos, para falar sobre a vida das crianças de Serra Leoa. Ishmael foi à entrevista e foi um dos escolhidos.

          De volta a seu país, Beah retomou os estudos. Nesse período o governo recebeu um golpe militar e foi deposto. A desordem instalou-se no país. Durante cinco meses seguidos nada havia para ser feito a não ser, ouvir os sons dos tiros que vinham da cidade e correr o risco de morrer quando precisavam sair para providenciar comida. Nesse período o tio adoece e morre.

          Sentindo-se novamente só e desamparado, Beah liga para sua amiga Laura nos Estados Unidos e pergunta se poderia ficar em sua casa, caso conseguisse escapar de Freetown. Correndo grande risco, passando por várias localidades, ele escapa de seu país e consegue chegar a Nova York onde foi adotado por Laura Simms.

          Aos vinte e cinco anos Beah relata esta rica experiência que vale a pena ser lida.

                                                                                                                      Limarchiori

3 comentários:

  1. Eu tenho esse livro. É muito bom mesmo, emocionante!
    Bjs

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  2. Que loucura...
    Sequer dá pra imaginar o horror que os homens criam para seus semelhantes ainda hoje, pleno século XXI. Movidos por ganância, ambição.

    "Imagine all the people
    Living life in peace!"

    John Lennon nem imaginava como isso está distante!

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  3. É verdade, Rose. Nesta resenha a amostra do horror é mínima. Lendo o livro, fico imaginando como essas crianças conseguem superar tanto horror e levar uma vida normal. Só por Deus!!

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Obrigada pelo comentário!